Sunday, June 24, 2018

Amarela


Eu não lembro como cheguei até aqui. É como se tudo estivesse escuro, bloqueado nas trevas da não memória. É como se meu nascimento tivesse se dado ali, na hora em que o brasileiro que tinha tido sua sombrinha trocada viesse procurar por uma saída.

Um museu de artes deveria ser um local mágico, encantador, mas eu não me lembro de nada dali. Minha primeira memória foi a felicidade daquele casal, ao sair do prédio comigo. Por que eles estavam tão alegres? Zurique é uma cidade linda, mas estava cinza, chuvosa, fria. 

Eu era velha? Teria passado por muitos donos antes deles? Ou tinha sido propriedade de apenas uma pessoa esquecida, que me abandonou no primeiro passeio comigo? Eu estava estonteante por poder respirar, me abrir ao mundo, colorir meus novos caminhos. Mas não seria sempre assim. 

Eu não tinha liberdade de escolha. Só servia para os desejos do casal, que brigava por mim, mas não fazia minhas vontades. Nos melhores momentos, quando o sol aparecia, eles preferiam me deixar de lado, como que por castigo. Mas de quê? Eu não havia cometido nenhum pecado. 

Depois tudo ficou escuro novamente. Eu fui trocada de mãos, não conhecia os novos rostos, que só me trocavam de rota e não me davam explicações. Percebi que as memórias nem sempre são dadivosas como afirmam. Eu torci para esquecer de tudo e voltar a viver na escuridão.

Foram dias sem descanso, mas cheguei numa tarde de sol. A língua era diferente, o clima e as pessoas também. Mas aquele mesmo rapaz me tomou pelos braços, e o casal voltou a sorrir. Eu estava suja, cansada, confusa, mas estava com eles. Acho que me senti em casa, mesmo estando do outro lado do mundo, no Recife.

Demorou para conhecer o lugar. Fiquei guardada num canto, junto com sacolas e outras da minha espécie. Mas uma hora tive chance de acompanhar a garota. Agora só ela sai comigo. Por aqui tudo é diferente: os sons, os rostos, as calçadas, as ruas, a língua, os gestos. Mas o hábito de me prenderem nos melhores momentos continua o mesmo.

Será que minha sina é agradar e proteger? Será que nunca terei vontade própria? Estou aprendendo a ser feliz nos momentos de adversidades, já que são eles que me fazem ser acionada para a vida. Acho que deve ser assim para todo mundo. Ou pelo menos para os da minha espécie. 

Anseio por ser sol, quando sou apenas cor nos dias de chuva.  

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